terça-feira, 6 de maio de 2014

JK e a versão da ditadura: cui prodest? A quem interessa? - Tribuna Livre 1



JK e a versão da ditadura: cui prodest? A quem interessa?






Como divulgado pela Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog (CMV Vladimir Herzog), existem 103 fatos e testemunhos que levam à conclusão que o Presidente Juscelino Kubitschek foi morto pelo regime de exceção brasileiro, que desenvolveu uma política sistemática e organizada de perseguição e eliminação de seus adversários, com a sua consequência lógica em relação às provas: adulterá-las, forjá-las, eliminá-las.


Foram analisados pela CMV Vladimir Herzog inúmeros documentos, relatos e depoimentos de pessoas que presenciaram o fato e tinham informações sobre as suas circunstâncias. Tudo isso foi feito levando-se em conta o contexto que circunda a análise desse acontecimento: entre outros, a Carta da Operação Condor, enviada pelo Coronel chileno Contreras Sepulveda a J. B. Figueiredo (integrante das forças de repressão, então chefe do SNI), em 28 de agosto de 1975, sobre o perigo que JK representava no contexto da abertura política dos Estados latino-americanos; a parada do carro do ex-Presidente minutos antes da colisão, em hotel de amigo próximo de Figueiredo; o fato de que JK tinha agendada nos próximos dias reunião com militares para discutir os caminhos da abertura brasileira; a falsa notícia veiculada por rádio e jornais de que JK teria sido vítima de acidente de trânsito na Via Dutra, dias antes do verdadeiro “acidente”.


A reconstituição da Memória do nosso país exige, por parte do Estado, a consideração dos fatos históricos, lidos à luz dos princípios que sustentam o Estado de Direito, consagrados em nossa Constituição. Esse passo como civilização exige a revelação integral dos fatos e documentos obscuros do passado, como feito por diversos países, que tornaram públicos todos os documentos de Estado de seus regimes ditatoriais. Os EUA estão liberando inúmeros documentos, como as determinações de Kennedy em apoio ao golpe, o que torna ainda menos razoável que nosso Estado tenha uma postura tão obscurantista.


O procedimento adotado pela CNV para avaliar o Caso JK teve inúmeras contradições, falhas e fragilidades, que não tornam suas conclusões legítimas para que ensinemos aos nossos filhos, netos, bisnetos, o que aconteceu no período. Sua tentativa de estancar o debate e as investigações, inclusive, só demonstram seus limites.


Sob a aparência de suposta “técnica”, chega a conclusões insustentáveis, que não serviriam sequer para uma decisão judicial em que se postula indenização securitária por acidente de trânsito. Incabível que tais fragilidades argumentativas possam significar “a verdade absoluta” – como nervosa e apressadamente querem seus defensores – sobre uma política de Estado que se articulava transnacionalmente, financiando a repressão, incluindo os órgãos “de prova” e exames periciais.


Buscando legitimar-se sob o argumento do trabalho “estritamente técnico”, a CNV do Estado de Direito adotou (a) a versão oficial do Regime Militar, (b) seus “documentos” e “informações”, (c) com um critério probatório em que as “verdades” criadas pelo Estado de Exceção são presumidas verdades, cabendo às vítimas de sua política de exceção, já no regime do Estado de Direito, décadas após a ocorrência dos fatos, provarem o contrário, o que é praticamente impossível. Se, em nosso Estado de Direito, consumidores possuem o direito de inversão do ônus da prova, o que se dirá das vítimas da repressão ditatorial? É cristalino que a “técnica” invocada é, na verdade, uma lamentável opção política.


Assim, “tecnicamente”, a Comissão passou a replicar documentos sobre os fatos produzidos durante e pelo próprio regime ditatorial para chegar, "por coincidência", às mesmas conclusões: tudo foi produto do “destino”, porque “Deus quis” (como lamentavelmente afirmado pelo Sr. José Paulo Cavalcanti Filho na Folha de São Paulo, dia 28 de abril de 2014).


Ao longo de seu trabalho, a CNV desconsiderou a perseguição sofrida por JK (a exemplo dos inúmeros Inquéritos Policiais Militares que respondeu); as articulações do regime para a “abertura lenta e gradual” e suas tensões internas entre grupos ainda mais duros do que a face pública da ditadura; as ameaças a essa abertura controlada representadas pelas figuras de JK, Jango e Lacerda; além da imensa quantidade e qualidade de fatos que constam do Relatório da CMV Vladimir Herzog.


Assim, “tecnicamente”, os “documentos” do regime profissionalizado em adulteração de documentos são classificados como “boa prova”, e o resto é considerado “conspiração”. As “provas” deixadas pelo regime especializado em forjar provas são tomadas como “sólidas”, e o resto é “o coro dos descontentes”. Assim, a força da repressão perpassa as décadas, capturando nosso direito à verdade e modulando um país de mentiras.


A CNV sequer se dispôs a discutir o caso com os membros desta Comissão, ignorando testemunhos vivos das circunstâncias da época, como o depoimento do motorista da Viação Cometa, Josias Nunes de Oliveira, a quem foi oferecida uma mala de dinheiro para assumir a culpa pelo “acidente”. Não contou também que ele foi judicialmente absolvido, em definitivo, por inexistir qualquer prova de que teria causado o tal “acidente”.


São tantas as fragilidades dos procedimentos e conclusões dessa Comissão, que darão, certamente, um estudo de caso sobre como não se proceder no futuro.


Causa perplexidade que o Estado de Direito, por meio de uma Comissão da Verdade que deveria revelar e questionar tudo o que se disse, fez-se e registrou-se pelo Estado de Exceção, simultaneamente: (1) sufrague a veracidade dos “documentos” forjados pela máquina de mentiras do Estado de exceção; (2) impute às suas vitimas o ônus da prova, obrigando-as a desconstituir, décadas depois, todas as “provas” forjadas e adulteradas pela máquina da repressão; (3) com base nessas duas premissas inaceitáveis, faça afirmações peremptórias sobre “a verdade” e, (4) buscando a desmoralização pública dos que não aceitam a versão da ditadura ou sua aceitação inconstitucional pelo Estado de Direito, evoque o “destino”, como se não houvesse instituições, homens, Estados estrangeiros, financiadores, operando para que o “destino” fosse exatamente o que eles quisessem, por meio da força.


Mas, certamente, para além das perplexidades, resta a clássica pergunta, formulada pela sabedoria dos jurisconsultos romanos quando queriam aproximar-se da verdade dos fatos: Cui prodest? A quem interessa? A quem interessa que o Estado de Direito tenha esse grau de submissão ao Estado de exceção? Só a completa abertura dos arquivos – sobre JK, Jango, Lacerda e tantos outros brasileiros, famosos ou não, vítimas do “destino” e das “coincidências” que os Fleurys, Malhães e outros servidores da Ditadura lhes prepararam – poderá responder.


É dever da Comissão Nacional reabrir o caso, estabelecendo diálogo com a sociedade e com o trabalho da CMV Vladimir Herzog. O Brasil não aceita mais o “destino” imposto pelos ditadores. O povo brasileiro quer a verdade, ampla, geral e irrestrita sobre a sua história. Esse é o país que queremos entregar aos nossos filhos e netos. Esse é um país digno.





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