terça-feira, 6 de maio de 2014

DESMILITARIZAÇÃO DAS POLICIAS - Tribuna Livre 1





DESMILITARIZAÇÃO DAS POLICIAS





O Estado Brasileiro teve suas bases constituídas por sistemas socioeconômicos paradoxais e desiguais, oriundos de séculos de exploração colonial predatória e ciclos escravistas que amalgamaram diversos povos sob o julgo do trabalho forçado e desumano implementado através da força privada, principalmente, e estatal, subsidiariamente.

Assim sendo, a constituição do sistema policial brasileiro está intimamente ligada à desigualdade social mantida através da violência oficial e com aval legal. As origens da polícia militar são o coronelismo constituindo policias locais, forças patrocinadas pelos grandes senhores da terra que, à época da República não se submeteram ao republicanismo, estruturando forças de segurança e repressão a níveis estaduais.

Todo esse quadro de uma força de segurança e uso de violência a nível privado-local evoluiu para a estrutura de defesa civil treinada para a guerra. E a guerra, nesse caso, é voltada para o cidadão infrator que, na esmagadora maioria dos casos, é o morador pobre e negro da periferia, o herdeiro direto de séculos e mais séculos de escravidão e dominação através da repressão violenta, da intimidação e do medo. Durante a Ditadura Militar, essa polícia se consolidou como um braço do exército, se constituindo na atual Polícia Militar.

Desde que ingressa na corporação militar, os policiais são treinados, logo cedo, para obedecerem à patente de forma acrítica e total, através de métodos violentos, com humilhações, ofensas morais, penas físicas e até mesmo prisões. A atuação violenta e autoritária da PM não é nada mais do que o reflexo dessa formação violenta e autoritária: tal como o policial foi treinado, ele irá assim agir. Na lógica do militarismo, obedece-se a autoridade, do coronel ao soldado. E o soldado, o posto mais baixo da patente militar, se constitui em autoridade perante o civil, a quem trata sempre como inferior, de maneira truculenta e opressiva, da mesma forma que é tratado pelos seus superiores. E abaixo do civil, está o infrator, o ‘criminoso’, o inimigo da polícia, desprovido de direitos e contra o qual é utilizada a força violenta ao sabor da discricionariedade militar.

Tal estrutura militar, por óbvio, ocasiona um distanciamento enorme entre a instituição e o restante da sociedade, agravado pelo seu fechamento ao controle social, com um enorme corporativismo e proteção interna, extra e também oficialmente, contando os militares com até mesmo uma Justiça própria, a Justiça Militar.

No resto do mundo, tal estrutura serve para fiscalizar atividades dos militares e patrulhamento de fronteiras. Porém, paradoxalmente no Brasil esta estrutura é a que realiza o policiamento ostensivo civil, operando, no entanto, através da lógica militar, o que reflete na brutalidade com que a polícia atua. Nossa guarda militarizada se trata praticamente de um caso sui generis das forças ostensivas de segurança civil, pois é exercida sob a lógica do militarismo, que os casos de violência repetidas vezes nos mostram como é ineficaz para promover a paz e a sensação de proteção que uma guarda cidadã tem o dever de proporcionar.

Os números atuais não mentem: a polícia militar é extremamente violenta. Segundo os dados da Ouvidoria da Polícia, a PM de São Paulo em 5 anos, matou mais do que todas as forças policiais dos Estados Unidos inteira no mesmo período, no período de 2005 a 2009. Esse número absurdo é o resultado da manutenção de um sistema economicamente opressor, constituído em intensas desigualdades sociais que o capitalismo de país subdesenvolvido adaptou de forma conveniente aos interesses do empresariado, através de forças de repressão brutais. A polícia transformando nosso conflito de classes em uma verdadeira guerra civil.

Com esse quadro de segregação social, fica compreensível, mas não menos aceitável, como a polícia opera de forma seletiva no país. Recente pesquisa feita pela UFSCAR descobriu que em São Paulo, nos anos de 2010 e 2011, entre as vítimas de mortes cometidas por policiais, 58% são negras, enquanto que na população residente do estado o percentual de negros é de 34%. Para cada grupo de 100 mil habitantes negros, foi morto 1,4; ao passo que, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos, foi morto 0,5. Estes números mostram como a atual política de segurança pública, militarizada, vitimiza ainda mais a população negra e que culmina nas altas taxas de mortalidade por homicídio neste grupo.

Assim, 50 anos após o golpe civil-militar de 1964, a herança de uma sociedade de bases extremamente desiguais, cristalizada nos anos de chumbo, encontra sua manutenção nas forças de repressão que operam com a mesma violência e segregação racial e socioeconômica, servindo de mantenedoras da desigualdade social e opressão. Assim, para a efetiva superação dessa sociedade injusta, devemos também superar o caráter militar das nossas forças de policiamento.

Atualmente, contamos com a PEC 51/2013, voltada para a desmilitarização da polícia, visando modificar o artigo 144 da Constituição Federal, que prevê a divisão do policiamento entre o civil e o militar. Esse projeto visa unificar a polícia em um ciclo completo e estabelecer uma ouvidoria externa, autônoma, em adição ao controle do Ministério Público, de modo a aumentar o controle social sobre a atuação policial.

Importante salientar que a desmilitarização não significa a extinção da polícia, como afirmam os conservadores ao querer manter o modelo militarizado, violento e discriminatório. Desmilitarizar significa, ao contrário, aumentar a eficiência e eficácia da polícia. O modelo atual se mostra insuficiente pra atender as necessidades e anseios da sociedade: em 2011, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que, em nenhuma região do País, mais de 6% da população diz "confiar muito" no trabalho das polícias. Na região Sudeste, o índice fica em 3%

A desmilitarização permitirá a unificação do trabalho da polícia e, ao mesmo tempo, a sua descentralização da mão do alto oficialato, o que dará mais possibilidade do trabalho policial se adequar às necessidades locais e comunitárias específicas de cada região. Com a dissolução da hierarquização militar da polícia e sua desvinculação da estrutura do Exército, os policiais não serão mais submetidos à ordem alienante do militarismo. Com isso, o distanciamento entre a polícia e a sociedade tenderá a diminuir, não mais estando o policial como um ser fora dela.



Nesse sentido, nos espelhando nos ideais de uma sociedade verdadeiramente justa e democrática, que permita às pessoas exercerem suas potencialidades de maneira isonômica e plena, nos posicionamos a favor da desmilitarização das polícias, para que possamos superar o modelo de opressão social que tanto vitima e atravanca a verdadeira justiça social.

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