terça-feira, 6 de maio de 2014

Comissões da Verdade no Brasil: balanço e perspectivas - Tribuna Livre 1



Comissões da Verdade no Brasil: balanço e perspectivas


Renan Honório Quinalha[1]






A busca da verdade em contexto pós-autoritário






No momento em que se rememoram os 50 anos do golpe militar que deu início à mais recente ditadura brasileira (1964 -1985), as declarações do coronel reformado do Exército Paulo Malhães, em audiência pública da Comissão Nacional da Verdade (CNV) ocorrida há um mês, bem como seu assassinato em estranhas circunstâncias na semana passada, chocaram o Brasil.






"Matei tantas pessoas quanto foram necessárias", disse ele, referindo-se a sua atuação como agente do aparelho de repressão. Durante a ditadura, uma ampla estrutura de violência foi utilizada para a perseguição de dissidentes políticos. Pelos levantamentos até hoje conhecidos, conforme apuração que consta no “Dossiê” publicado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, as violências atingiram cifras muito elevadas no Brasil: mais de 50 mil presos nos primeiros meses depois do golpe, 437 mortos e desaparecidos políticos,10.034 pessoas submetidas a inquérito e 7.376 indiciadas por crimes políticos, 130 banidos, 4.862 cassados, 6.952 militares atingidos, 1.188 camponeses assassinados, 4 condenados à pena de morte e milhares de exilados.






Apesar de elevados, esses números não oferecem a real dimensão das violências que foram praticadas pela ditadura militar brasileira. Primeiro, porque é impossível medir, em números, a gravidade e a herança de violências de um regime autoritário. Segundo, o próprio caráter arbitrário das ditaduras esconde o número real das violações de direitos humanos, pois muitos casos anônimos, sequer conhecidos, não se encontram registrados nas listas existentes sobre esse tema.






Desde a transição democrática, os familiares de desaparecidos políticos e as ex-vítimas da ditadura reivindicaram a verdade e a justiça face às violências de Estado cometidas no passado recente.






No entanto, somente há poucos anos é que essas reivindicações ganharam mais espaço na agenda política brasileira. Do ponto de vista das políticas públicas de reparação, merecem destaque a Lei 9.140, de 1995, por meio da qual foi reconhecida a responsabilidade oficial do Estado em alguns casos de mortos e desaparecidos. Em 2002, por medida provisória depois convertida na Lei 10.559, de 2003, foi criada a Comissão de Anistia com o objetivo de prover a reparação pecuniária e simbólica às vítimas da ditadura.






Mais recentemente, no entanto, um marco fundamental foi a edição da Lei 12.528, de 2011, que criou a CNV com o objetivo de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos no Brasil no período que vai de 1946 até 1988, com foco na ditadura.










Funções das Comissões da Verdade






A Comissão da Verdade é um dos instrumentos utilizados na investigação de um passado de violações de direitos humanos, para que se realizem as reparações adequadas às vítimas e para que as violências não se repitam.






Há uma série de obrigações internacionais que devem ser cumpridas pelos Estados para lidar com o legado de violências de regimes autoritários. É possível agrupá-las, de forma didática, em cinco grandes eixos: verdade, memória, reparação, justiça e reforma das instituições.






No que se refere à busca e à revelação da verdade em torno das violações de direitos humanos, há diversos mecanismos dos quais os governos podem se valer para efetivar políticas públicas adequadas nessa área. Esses mecanismos, no entanto, devem estar orientados no sentido de garantir o direito à verdade das vítimas, de suas famílias e da sociedade como um todo.






Para garantir o direito à verdade, é preciso que haja a abertura mais ampla possível dos acervos de documentos oficiais da ditadura, divulgando os dados produzidos pelos órgãos de informação e pela burocracia estatal. Além disso, um mecanismo que vem sendo utilizado em inúmeros países são as Comissões da Verdade.






De forma geral, as Comissões da Verdade são órgãos oficiais ou extra-oficiais, instituídos com a função de construir uma narrativa de um período de graves violações de direitos humanos, apontando os crimes que foram cometidos, as circunstâncias dessas violências e as pessoas envolvidas. Normalmente são compostas com pessoas comprometidas com a defesa dos direitos humanos e dos valores democráticos. A depender das particularidades de cada nação, a Comissão pode assumir formatos e funções diferentes.






Os principais objetivos das Comissões de Verdade são: construir uma memória coletiva dos fatos ocorridos no passado; superar a negação oficial das atrocidades cometidas e reconhecendo-as publicamente; identificar as vítimas das violações de direitos humanos para promover políticas de reparação efetivas; conhecer as circunstâncias em que ocorreram; identificar os autores das violências, responsabilizando-os socialmente e, se possível, colhendo elementos que permitam também a responsabilização penal; criar uma narrativa histórica comum para um novo futuro; garantir a dignidade das vítimas e dos seus familiares;romper com o ciclo de violências e promover a estabilidade do novo regime; educar a população sobre o ocorrido e recomendar caminhos para coibir a repetição dessas práticas.






O caso brasileiro: desafios a serem enfrentados






Nessa linha, a CNV é um órgão de Estado, sem poderes jurisdicionais, mas investida de prerrogativas importantes para investigar as “graves violações de direitos humanos” conforme definição legal.






Pela primeira vez em nosso lento e conturbado processo de justiça de transição, uma lei consagrou o direito à verdade em nosso país, dando poderes para que a Comissão possa convocar agentes públicos para prestar depoimentos, requisitar documentos e, o que é bastante importante, apontar os autores das violências cometidas, reconstituindo as cadeias de comando da máquina repressiva estruturada pela ditadura.






Sob o impulso inicial da CNV, diversas Comissões da Verdade foram criadas em nível regional e mesmo setorial. Entes federativos, assembleias legislativas, sindicatos, universidades, entidades da sociedade civil, enfim, uma ampla rede nacional de apoio foi formada.






Inúmeras têm sido as audiências públicas realizadas por todo o país. Somente na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, foram mais de 120 audiências abertas aos interessados e com transmissão ao vivo, com ampla participação de vítimas e de familiares. Muitas informações têm sido sistematizadas a partir desses espaços de escuta oficiais abertos pela primeira vez pelo Estado brasileiro.






No entanto, passados quase dois anos do começo do funcionamento da CNV, nota-se que seu trabalho investigativo está, de certo modo, bloqueado. As Comissões têm privilegiado a reconstrução da memória das vítimas e o acolhimento de seus sofrimentos, tarefas sem dúvida fundamentais e necessárias. No entanto, com raras exceções, pouco se tem avançado efetivamente na descoberta de novos fatos.






Isso se deve a diversos fatores que marcaram o antes, o durante e o depois do processo de criação das Comissões. No entanto, a falta de apoio político de outros órgãos de governo, em especial da Presidência da República, tem causado um isolamento daCNV, que se manifesta na incapacidade desta de levar adiante os embates necessários com os setores militares e civis herdeiros da ditadura, como Forças Armadas e empresariado, que ainda mantêm um poder residual importante no sistema político brasileiro.






Cada vez mais fica claro que não houve, até o momento e a contento, a submissão do poder militar ao controle civil em nossa democracia. As Comissões da Verdade não podem ser cobradas para realizar algo que, em quase 30 anos, os governos democráticos não puderam ou não quiseram levar a cabo e que são obrigações do Estado brasileiro.






Muitos arquivos já se encontram disponíveis para consulta e alguns estão até mesmo digitalizados. No entanto, é preciso que haja, para o sucesso das Comissões da Verdade no Brasil nesse tempo restante, o pleno e integral acesso aos arquivos militares ainda não vistos, que certamente não foram destruídos como já alegado pela cúpula das Forças Armadas quando requisitados.






Além disso, as Forças Armadas, enquanto instituição, precisam contribuir efetivamente para levar adiante esse processo de apuração de responsabilidades, assumindo o que alguns de seus integrantes fizeram e pedindo perdão à Nação. As Forças Armadas não podem silenciar alegando nada te a declarar diante de confissões de culpa por crimes tão graves como aqueles cometidos por um de seus agentes, Paulo Malhães, conforme seu depoimento à CNV. Resta aguardar o resultado das sindicâncias internas que as Forças Armadas se comprometeram a realizar para apurar o envolvimento de seus agentes com as violações de direitos.






Cabe ao governo brasileiro, nessa encruzilhada decisiva da nossa história, valer-se da legitimidade política da qual está investido para usar sua força de comando sobre as corporações militares a fim de garantir o restabelecimento da verdade e o respeito aos direitos humanos.



















[1] *Graduado e Mestre em Direito pela USP. Doutorando em Relações Internacionais (IRI/USP) e advogado da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Autor do livro Justiça de Transição: contornos do conceito (Expressão Popular, 2013).

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