As mulheres brasileiras na Ditadura Civil-Militar de 1964
Na história de lutas e de resistência contra a Ditadura, como em qualquer outro período histórico, a importância da participação das mulheres é mitigada pela forma como os eventos são estudados através da perspectiva do gênero masculino. É importante colocar, desse modo, que a reconstrução da narrativa história deve ser feita com com a desmistificação de diversos acontecimentos e com a colocação da mulher em sua devida posição histórica. E no caso de nossa história recente: inserida em diversas lutas contra a ditadura militar no Brasil.
Dentro desse recorte, vale dizer que a luta feminina teve um caráter duplo contra a repressão: além da resistência ao lado dos homens e contra o regime instaurado, as mulheres lutavam contra a opressão de gênero, a posição refratária de suas famílias, de seus companheiros e da própria sociedade. A mulher que se impunha abria mão de seu papel social e de sua aceitação. Colocava-se no espaço público apesar de todas as dificuldades que enfrentava. Por isso a história da mulher brasileira contra a ditadura é bem mais que uma luta contra a repressão: é uma luta, também, contra a opressão de gênero, contra o papel de submissão historicamente designado a elas.
De acordo com o projeto “Brasil Nunca mais”, desenvolvido no período, 695 processos instaurados pela ditadura foram analisados, e constatou-se que 7.367 cidadãos e cidadãs foram denunciados por atuação contra o regime. Desse total, 12% são mulheres, nos levando à marca de 884 militantes do sexo feminino. Esses dados nos mostram que, apesar de poucas, as mulheres tomaram parte nessa luta. Nos dias de hoje, infelizmente, o número de mulheres parlamentares, por exemplo, é proporcionalmente o mesmo do observado nos processos (pouco mais de 10% no Congresso Nacional).
Essas mulheres, guerrilheiras, militantes, transgressoras, sofriam com a repressão e com o machismo vindo de todos os lados – e nem mesmo as organizações de combate ao regime eram espaços abertos à participação feminina. Na época, era muito comum que as militantes fossem taxadas de “mulher-macho” ou, se muito “femininas” para os padrões, dizia-se que estavam na luta em busca de homens. Não havia para onde correr, exceto para os espaços exclusivamente femininos, que despontaram na época e que deram (e dão) imensa contribuição ao aprofundamento da pauta feminista nos espaços políticos brasileiros os quais, dentro da esquerda, atinham-se quase que somente às questões de classe.
Os relatos das mulheres que sobreviveram bravamente à ditadura a respeito de suas experiências pessoais e de companheiras que tombaram são dos mais chocantes possíveis. As torturas contra as mulheres envolviam complexas questões de dominação de gênero e de violência sexual. É simplesmente impossível desvincularmos tortura de estupro, por exemplo, quando nos remetemos aos atos praticados contra as mulheres.
No livro “Mulheres que foram à luta armada”, do jornalista Luiz Maklouf de Carvalho, encontramos histórias como a da companheira Dulce Maia, à época da VPR: “O sargento metia a cabeça entre as minhas pernas e gritava: ´Você vai parir eletricidade´”. Ou também a história de Sônia Angel Jones, à época do MR-8, que teve os dois seios arrancados durante a tortura que a levou à morte. “Assim, o primórdio de um movimento feminista brasileiro vai surgindo como uma forma das mulheres se posicionarem contra o regime em questão”, conforme propôs Helen Safa, latino-americanista, professora emérita do Departamento de Antropologia da Universidade da Florida, em 1990.
Ainda, sobre o fortalecimento do feminismo no período, podemos destacar que em meados dos anos 1970 (quando a ONU declara 1975 como o ano internacional da mulher) duas revistas feministas são lançadas – “Brasil Mulher” e “Nós Mulheres” – e debates antes muito tímidos passaram a tomar maiores proporções. Soma-se a isso a volta, em 1979, das exiladas, que proporcionou o contato das militantes que ficaram no Brasil com aquelas que tiveram experiências com os feminismos norte-americanos e europeus, por exemplo. A caminhada de lutas e de resistência das mulheres brasileiras na ditadura jamais será esquecida.
Nós, feministas, devemos relembrar sempre que possível que entre 1964 e 1984 tombaram companheiras que romperam barreiras históricas em um dos países mais machistas e opressores do mundo. O papel desempenhado por essas mulheres deve nos servir de inspiração na construção de um país mais democrático, mais feminista e menos repressor.
“A tortura é a regressão do homem ao não-humano. A tortura é a negação do humano – e essa é a chave da sua eficácia. A prática da tortura contamina o torturador, destrói seu equilíbrio. O torturador está a todo o momento exercitando aquilo que há de pior nele. Com o tempo ele reforça sua não-humanidade, entroniza como valor seu lado mais podre. Não é possível mais pensar num burocrata que no fim do expediente volta para casa para encontrar sua mulher e seus filhos. Depois de certo tempo o torturador é torturador o tempo todo.” Renato Tapajós, ala vermelha do PcdoB
Maria Ângela Ribeiro, Iara Iavelberg, Marilene Vilas-Boas Pinto, Nilda Carvalho Cunha e muitas outras mulheres, companheiras, transgressoras e militantes que tombaram: presente!
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