Difícil
imaginar que alguém seja contra utilizar uma ferramenta de política pública
para direcionar a oferta de profissionais, principalmente quando o que está em
cheque é área onde mais se denotam as desigualdades nos níveis de qualidade
ofertados a quem tem menos renda. A saúde é campo onde mais fica evidente que o
programa político da Constituição ainda não foi efetivado em sua plenitude. A
ousadia de insculpir um Sistema Único, com atendimento universalizado para uma
nação com 200 milhões de habitantes, sui generis como experiência mundial,
também outorga ao Estado brasileiro um desafio que é o de oferecer nível similar
de atendimento na rede pública ao que é ofertado em alguns hospitais onde Saúde
é mercadoria a ser comprada.
O
programa Mais Médicos, lançado pela gestão do Ministro Alexandre Padilha e
encaminhado pelo Governo Federal ao Legislativo, busca solucionar ao menos um
dos eixos dos problemas que ainda temos na concretização deste grande projeto
de país que é o SUS. Busca, mediante política de incentivos na remuneração, e bonificação
nos concursos de residência no caso dos graduandos, estabelecer médicos em
regiões periféricas das grandes metrópoles e nas Regiões Norte e Nordeste, em
cidades onde faltam médicos para o atendimento à população. Dados mostram que
1,5 mil municípios no Brasil tem menos de um médico por 3 mil habitantes. E 700
cidades não possuem profissionais. São rincões onde não há interesse comercial,
onde não há a complexidade de tecnologia que os grandes centros possuem,
atraindo capitais e profissionais especificamente em áreas que mais remuneram.
E esta é a lógica do currículo do curso de Medicina hoje no Brasil: formar
especialistas, privilegiando-se já nos dois últimos anos a especialização de
alta complexidade (de reparação, de cirurgia, de tratamento da doença) visando
uma vaga nas concorridíssimas residências, pensando já nos polpudos salários
que mercado de trabalho oferece. Privilegia-se o profissional especialista em
áreas comercialmente interessantes, em detrimento do atendimento preventivo a
enfermidade, da atenção básica, com o médico perto de onde mora o paciente,
acompanhando a evolução de seu quadro – vale dizer, uma medicina de baixo custo
e alto resultado
O
retrato da Graduação hoje é o diagnóstico, além de tudo, do investimento em um Sistema caro, pois
não buscando prevenir a doença, mas sim curá-la. E a formação do médico tem
particular ressonância nisso, posto as demandas do Sistema Único não serem as
prioridades do eixo político-pedagógico dos cursos oferecidos nos bancos
universitários. O Mais Médicos acerta, pois, ao ampliar a Graduação em dois
anos de estágio no Sistema Único, como mecanismo de ampliar a formação de um
médico especialista, não só na técnica, mas em gente humana (e evitar a
especialização precoce). Inclusive esses graduandos vão atuar no Programa Saúde
da Família (PSF), onde os médicos acompanham o paciente perto dos locais onde
eles moram, estabelecendo uma relação pessoal com paciente, e de acompanhamento
na prevenção. O PSF, com lógica completamente inovadora no trato com o
paciente, hoje padece da falta de profissionais, até por demandar dos
profissionais dedicação de jornada de 40 hrs (sendo que uma das características
da categoria hoje são os vários vínculos empregatícios dos médicos. Hoje o PSF
tem 37 mil equipes, e demandaria para pensar em uma universalização, de 50 mil
equipes médicas. O estudante de medicina vai atuar na Rede SAMU, de atendimento
de emergência. Esse estágio será remunerado, de 3 a 8 mil reais (que curso
propicia tal remuneração a um estudante ainda não graduado?).
Importante
dizer também que o curso de Medicina, bem como outros cursos que ofertam
possibilidades de maior remuneração, são elitizados em sua composição de
classe: dados que não há sequer um negro ingressante no curso da USP em 2013, e
2% egresso da escola pública no curso da UNESP – vale lembrar que 80% dos
formandos no Ensino Médio são matriculados no ensino público em SP. São estudantes, muitas
vezes, que nunca tiveram contato com o atendimento público de saúde, pelo
privilégio de contarem com bons seguros a lhes propiciaram a oferta das
melhores vagas no atendimento na rede privada. Eles têm sorte nisso, mas também
responsabilidades na mudança social.
É,
portanto, contato com outra realidade social. Trata-se de uma extensão ao curso
visando também formar um profissional com juízo crítico, conhecedor da
realidade cotidiana do Sistema Único; e com consciência política de suas
responsabilidades e tarefas como profissional num país de desigualdades no
atendimento à Saúde como o Brasil. Objetiva, também, estimular a contrapartida
ao financiamento dos estudos que se traduzem em bolsas na Graduação ou
financiamentos subsidiados (ProUni e FIES), e mesmo o curso nas universidades
públicas. Traduz-se no mínimo que o jovem graduando retribui ao todo da
sociedade pelas oportunidades de trabalho que surgem de sua formação em
Medicina.
O
Mais Médicos vem com investimentos para a criação de 11 mil vagas em
universidades federais, priorizando as regiões interiores e no Norte e Nordeste
para instalação dos campi. Aliás, essa é uma característica que ilustra a falta
de médicos no Brasil: são ofertadas 17 mil vagas nos exames vestibulares, todos
os anos. Pra uma procura de 200 mil vestibulandos. Como exemplo, a Espanha, que
tem índice de 4 médicos por mil habitantes. Para atingir esse índice
precisaríamos alavancar para 29 mil vagas: hoje, o diagnóstico é que temos
menos médicos e oferecemos menos vagas nos cursos universitários. Só que,
implantado a partir de 2015, esses estudantes só se graduarão dentro de vários
anos. E o problema da ausência de profissionais em áreas prioritárias não pode
esperar. Então, serão atraídos médicos (mediante bolsa de 10 mil reais, mais
auxílio moradia inicial de um a três vencimentos) para essas regiões. Preferencialmente,
as vagas são ocupadas em edital aos profissionais brasileiros, depois
brasileiros formados no exterior, e aí então (se ainda houver demanda de
profissionais) são chamados médicos estrangeiros, para atuar exclusivamente no
âmbito do Mais Médicos (e não na rede privada, portanto não há qualquer
“concorrência” com profissionais nativos). Esses médicos cumprirão requisitos
de fluência em língua portuguesa, graduação em um país com mais médicos por
habitante do que a média brasileira (no geral 1,8 por mil habitantes), e serão
acompanhados e avaliados com supervisão das universidades e secretarias de
Saúde. Importante dizer que a exigência do Revalida para regularizar os
diplomas não cumpre o papel urgente de deslocar médicos pra áreas carentes de
profissionais: exame de 2010 aprovou só dois em 600 inscritos. Não há qualquer
critério para se estabelecer verdadeiras reservas de mercado injustificáveis,
defendidas corporativamente por algumas entidades de médicos.
No
que tange a certa aversão das entidades de classe, e aos protestos contra a
vinda de médicos estrangeiros, só cabe dizer que é fruto de preconceito
deduzido da ignorância causada pela desinformação propositalmente causada em
boa parte das grandes mídias (em sua cobertura enviesada visando deslegitimar o
programa sem debate); e nas redes sociais – veículo muito utilizado por médicos
e estudantes de medicina, ainda pouco difundida no cotidiano dos usuários
contumazes do Sistema Único. Atente-se que os protestos contaram até com figurantes,
e tinham notadamente uma composição de classe e cor. Atente-se também que foram
realizados nos grandes centros, sem qualquer reclamação nas periferias e nos
pequenos e médios municípios que são o escopo do Mais Médicos. Aliás, a demanda
por médicos é real dos Prefeitos e Prefeitas dos pequenos e médios municípios
há muito tempo: deixa-se de abrir unidades de atendimento, com recursos
conveniados do Ministério da Saúde, pela impossibilidade de preenchimento das
mesmas com profissionais da saúde. Atente-se que não há qualquer “protesto” dos
usuários contumazes do Sistema Único de Saúde a iniciativa do Mais Médicos. Denota-se,
sobretudo, a falta de propostas das entidades classistas no aprofundamento da
qualidade do Sistema Único, a cair no sempre vago argumento do financiamento,
que serve (muitas vezes) para simplesmente se imiscuir de responsabilidades.
Obviamente
que os outros dois eixos de problemas no Sistema Único são os recursos
(orçamento que quadruplicou nos últimos dez anos, hoje na escala de 100 bilhões
de reais anuais, o maior orçamento das pastas ministeriais) com o
subfinanciamento e a gestão desse recurso, na necessidade premente de
estabelecer marcos de gestão pública, principalmente nas Prefeituras. O Mais
Médicos avança em estipular 13 bilhões de reais nas reformas e obras em
hospitais, Unidades Básicas de Socorro (UBSs) e Unidades de Pronto Atendimento
(UPAs); e financiar equipamentos como ambulância para os Municípios com maior
demanda de recursos. Contudo, outras fontes de financiamento urgem necessárias
para o Sistema Único, sobretudo em um país em transição geracional em que as
pessoas vivem cada vez mais, e demandam mais do SUS. O imposto sobre as
movimentações financeiras que vinculava recursos a saúde, sobre o cheque (a
CPMF), foi acabada em 2007 após campanha de setores que hoje (teoricamente) pedem
novos recursos para o SUS. Era um orçamento da ordem de 40 bilhões anuais pra
saúde. Urge o aumento da alíquota do Imposto de Renda (teto ínfimo de 27,5%),
taxando as grandes fortunas, para que o rico financie mais o Sistema Único de
Saúde. Urge acabar com as deduções de planos de saúde no IR, desonerações para
falsas filantropias e para a indústria farmacêutica, em mecanismos que
acresceriam recursos da ordem de 16 bilhões anuais – mais que os recursos
anunciados no Mais Médicos para reestruturação da rede.
Cabe
também, a título de romper as amarras da desinformação difundida, afirmar a
experiência cubana como exemplo de atendimento universal a medicina básica e
preventiva, com profissionais com formação ampla e de qualidade reconhecida
mundialmente (conveniados em vários países, pela alta oferta de profissionais
que as universidades cubanas oferecem), em país caracterizado pela baixa
complexidade tecnológica, boicotado pelos centros capitalistas. O que prova
que, mais do que complexos hospitalares, o Sistema Único nacional precisa de
médicos, na essência humana do ofício, no acompanhamento individual e cioso do
paciente, no cuidado básico e perto das comunidades. Precisamos de outra lógica
na formação de profissionais, uma menos voltada para o mercado de trabalho e
uma mais voltada à razão mesma da Medicina, que é cuidar de gente.
O
debate do financiamento não imiscui em nada, não é em nada dicotômico com o
direcionamento de médicos e a ampliação da oferta de profissionais no Sistema
Único. Quem confunde as coisas ou é mal informado, ou não quer formular solução
pra efetivação material do SUS. Destarte, tem um fator fundamental para a
efetivação de um sistema universal e gratuito de saúde para todos no Brasil: os
médicos têm que se sentir parte da construção do Sistema Único. Não podem,
simplesmente, agir como se esperassem a estrutura pronta e aí então resolvessem
operar nela. Fazer o debate opondo governo e médicos só interessa a quem não
tem qualquer tipo de compromisso com um atendimento universal de qualidade para
todo o povo brasileiro. Que o espírito público dos médicos brasileiros que
querem construir esse país mais igual em oportunidades se eleve na
reestruturação do SUS, na contínua ampliação de sua estrutura hospitalar, no
rearranjo de instrumentos de aumento dos recursos para Prefeituras, Governos e
o Ministério da Saúde. Que o Judiciário e o Legislativo não impeçam mais esse
avanço democrático, que é o reconhecimento da falta de médicos nas regiões mais
carentes do nosso país e a busca de uma solução para essa questão, direcionando
a oferta de profissionais. Que a reforma no currículo de Medicina seja o
paradigma de outra lógica na formação dos médicos, abnegados na promoção de
justiça social.
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