domingo, 23 de junho de 2013

Carandiru para além do luto

O recente julgamento de parte dos acusados pelo fato que ficou conhecido como o Massacre do Carandiru trouxe à tona uma série de debates sobre o sistema penal brasileiro. O julgamento - que é o primeiro dos quatro envolvendo o caso - condenou 26 réus a 156 anos de prisão pela morte e lesão corporal de 30 dos 111 mortos no episódio de 2 de outubro de 1992.

O Massacre, que completou vinte anos em 2012, ainda  guarda diversas questões mal explicadas e incômodas. A primeira delas remete ao fato da longa espera pelo julgamento, o que, inclusive e dentre outras causas, já fez o Estado Brasileiro ser responsabilizado internacionalmente pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA). Até o julgamento dos 26 policiais militares, tudo o que se tinha era a condenação em júri popular do comandante da operação, Coronel Ubiratan Guimarães, o qual, todavia, foi posteriormente inocentado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. O mesmo Ubiratan, chegou a tomar posse como suplente de deputado estadual pelo PSD por duas vezes enquanto respondia ao processo criminal e, após sua condenação pelo Tribunal do Júri, foi eleito deputado estadual por São Paulo com o sinistro número 14.111 em sua inscrição eleitoral.

Outra das diversas inquietações, por exemplo, diz respeito ao número oficial de mortos no Massacre. Constataram-se incompatibilidades quanto ao número divulgado pelo IML e pela Casa de Detenção em relação aos números apresentados pelas organizações da sociedade civil, como a Pastoral Carcerária, familiares e pelos próprios presos sobreviventes, os quais superam, em muito, o dado oficial. Entre as próprias fontes oficiais, o consenso acerca do número 111 só se deu no dia 10 de outubro: até então, pouco mais de 40 nomes haviam sido divulgados. Até hoje, pairariam controvérsias sobre nome e situação em que se encontravam as vítimas do incidente.

O descaso das autoridades no dia do Massacre o os que o sucederam também foi completo. Durante a operação militar, comprovou-se que certos sobreviventes - todos nus, em sinal de rendição - foram obrigados a carregar os corpos das vítimas, no intuito de que se alterasse as cenas onde ocorreram os crimes. Muitos deles foram mortos em seguida. Sobreviventes feridos esperaram dias por algum atendimento médico, alguns esperando até uma semana por tal tratamento, enfrentando, ainda, a carência de leitos hospitalares. Um desses feridos - estima-se que haveriam entre 35 e 108 feridos, por balas e mordiduras de cães - aguardou dez dias até ter as balas que se encontravam alojadas em seu corpo removidas.

Os familiares, por sua vez, passaram por igual desrespeito. A falta de informações precisas sobre os “mortos prováveis” obrigou que familiares percorressem os IMLs da cidade em busca dos corpos. Ademais, como o reconhecimento deveria ser feito obrigatoriamente até a terça-feira após o ocorrido (06 de outubro), sob “pena” de serem os corpos não identificados no prazo enterrados como indigentes. Nos dias que se seguiram a essa terça-feira, muitas famílias ainda não conseguiriam encontrar seus parentes mortos.

Não obstante os vinte anos do Massacre tenha se dado em 2012, assim como em boa parte da sociedade, o assunto só voltou verdadeiramente a repercutir na faculdade às vésperas do aguardado julgamento. Assim, um ato solene promovido pelo XI de Agosto convocou diversas autoridades, professores, políticos e outras figuras de renome, como Drauzio Varella, para discursarem em prol de uma humanização do cárcere. Posteriormente, na segunda-feira em que se iniciaria o julgamento (o qual, todavia, acabou sendo adiado) um ato realizado pelo XI de Agosto lembrou o Massacre com cruzes representando os mortos no incidente postas em frente à Faculdade, simbolizando luto pelas vidas perdidas no Massacre.

Ambos eventos tiveram seu mérito sobretudo por conferir visibilidade à questão carcerária no Brasil e também por impedir que todo o circuito de injustiças relativas ao Massacre do Carandiru fosse esquecido. No entanto, alguns pontos merecem crítica, tal como o fato de se enfatizar a necessidade de humanização do cárcere, o que é, em si, potencialmente perigoso, vez que o mero clamor por uma humanização pode levar a uma legitimação inexorável do mesmo, levando a inferir que o mesmo é bom, desde que respeitadas algumas condições de espaço e higiene, por exemplo.

Mais do que luto por esses (até hoje não certos) 111 mortos no Massacre, é preciso que se tenha uma ação voltada ao questionamento daqueles problemas que ocorreram antes e quando do Massacre. Hoje, é dado comprovaod que a população eminentemente negra e periférica ainda é o alvo preferencial das intervenções militares, as quais, no cárcere ou fora dele, é marcada pela usual truculência. A superpopulação carcerária é outro fator que não pode ser esquecido: é sabido que, mesmo naquela época, a Casa de Detenção já sofria com a população carcerária que em muito superava a sua capacidade interna. Hoje, esse problema foi exponencialmente agravado, existindo uma oferta de cerca de 300 mil vagas no sistema penitenciário brasileiro, enquanto que a população carcerária, em 2012, já superava 515 mil. O processo de interiorização dos presídios, que incentivou a construção de presídios com um menor numero de vagas, levando a uma expansão de novas unidades carcerárias, algumas delas já privatizadas, é outro processo desenvolvido a partir de medidas estatais pós-Massacre.

É necessário, talvez mais do que nunca, problematizar verdadeiramente a fundo toda a problemática que envolve a questão penitenciária no Brasil. Observa-se, atualmente, um avanço generalizado da mentalidade punitivista, que ganha voz nos meios de comunicação e que legitima e respalda não somente a repressão policial sobre aqueles considerados potencialmente perigosos ou afrontadores à ordem social, mas mesmo a violência com que essas intervenções policiais ocorrem. É cada vez mais maniqueísta a visão que se tem da criminalidade hoje em dia, que se divide em um confronto entre as pessoas de bem e os bandidos, inimigos da ordem social e que podem ser, no limite, corpos matáveis.

Quando do Massacre do Carandiru, uma relevante parcela da população aprovou a operação policial e havia até mesmo quem acreditasse que tais policiais não fizeram mais do que um favor para a sociedade – a ponto de, anos mais tarde, elegerem o comandante do ato, coronel Ubiratan Guimarães, com nada menos do que 56.155 votos. Mais de vinte anos depois, a lógica permanece: é assim que silenciosamente se operam “massacres” urbanos promovidos pelo Estado, como o de maio de 2006 ou de outubro de 2012, que restam mal esclarecidos. Para obter algumas respostas a esses problemas, resquícios do Massacre, não basta um projeto que mire meramente rumo a um cárcere cidadão.

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