terça-feira, 14 de maio de 2013

A violência de gênero de todo dia

             Principal tema dos atos públicos ocorridos no último 8 de março, quando se comemorou o Dia Internacional da Mulher, a violência contra a mulher parece, finalmente, ter ganhado a devida visibilidade. Nos últimos dez anos e, sobretudo, após a edição da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), o que se tem visto é uma crescente relevância dessa pauta histórica do movimento feminista em âmbito nacional.

            Isso porque é a partir de então que se começa a produzir uma maior quantidade de estudos sobre o quadro de violência – sobretudo a doméstica e sexual – contra a mulher existente no país e a se elaborar estatísticas mais específicas e apuradas sobre a situação em foco. Também é a partir daí que os mais variados meios de comunicação abriram maior canal para a discussão de tal problema social. Seguindo esse mesmo sentido, o número de denúncias de violência contra a mulher também aumentou expressivamente: em 2012, o serviço Ligue 180, do governo federal, registrou mais de 88 mil casos de agressão, refletindo um aumento de 600% em apenas 6 anos.

            Os dados que tal visibilidade revela, no entanto, são estarrecedores. Estima-se, hoje, que, a cada 15 segundos, uma mulher é agredida no Brasil e que, a cada duas horas, uma mulher morre vítima de violência no país. Três quartos dos casos de violência doméstica e sexual, ocorridos da infância até a terceira idade, tem como vítima as mulheres. Em vinte anos, o Mapa da Violência constatou que o número de homicídios femininos dobrou, registrando, em 2010, cerca de 4.600 mortes. Destes homicídios, 84,5% são cometidos por conhecidos.

            E não para por aí. Em se tratando de violência doméstica, dados do IBGE constataram que, a cada ano, um milhão de mulheres são vítimas desse tipo de violência no país. Novamente, na maioria das vezes (70%), os agressores são os próprios maridos, companheiros ou ex-companheiros. Ao longo da vida, 25% das mulheres brasileiras são ou foram vítimas de violência doméstica, esta que constitui a maior causa de morte e invalidez entre mulheres de 16 a 44 anos. Já em relação à violência sexual, o Sistema Único de Saúde (SUS) divulgou que chega a receber duas mulheres por hora vítimas de abuso sexual. Destas, cerca de 75% são crianças, adolescentes e idosas, revelando a relação direta entre abuso e a situação de vulnerabilidade especial desses grupos. E o mesmo se repete: em pelo menos 65% dos casos, o agressor é conhecido – é o padrasto, o pai, o namorado, o amante, o vizinho, o avô.

            Diagnóstico geral que pode ser feito a partir dos dados levantados é o fato de que cai por terra a ideia que de que a violência sofrida pela mulher é desvinculada de qualquer relação de poder estabelecida entre sexos. O caso da violência sexual é emblemático nesse sentido, vez que não raro permeia o imaginário social que a figura do estuprador é a do indivíduo desconhecido e psicopata disposto a atacar mulheres pelas ruas, sem possuir qualquer laço com sua vítima. Percebe-se, ao contrário, que as mulheres se encontram em situação de vulnerabilidade nas suas relações cotidianas, sendo vítimas de abusos praticados por pessoas muitas vezes queridas, o que torna, inclusive, imensamente mais difícil o ato de denunciar as diferentes agressões sofridas, tendo em vista todo o rompimento potencial da suposta ordem familiar, a mesma que, por outro lado, camufla e banaliza a violência.

            O que se vê, tanto no caso da violência física quanto sexual contra a mulher, é a ideia de naturalização das condutas criminosas em relações de abuso. Assim, as agressões físicas surgem como o exercício de um mero poder disciplinar e corretivo sobre a mulher, colocando-a “em seu devido lugar” e, sobretudo, não reconhecendo as suas demais dimensões para além de um corpo destinado a cumprir papéis idealizados na divisão sexual do trabalho: a de companheira asseada e, por que não, submissa. Ao se pensar na violência sexual, por sua vez, é bastante comum se observar algo que pode ser chamado de culpabilização da vítima, isto é, a ideia de que a mulher também foi, de certa forma, culpada pelo ato, pois teria provocado o instinto sexual, ou mesmo que ela teria consentido, mesmo que previamente. O agressor, no mais das vezes, todavia, é visto como inocente ou alguém que apenas teria lido as “entrelinhas” daquilo que a própria mulher sinalizava. Quando muito, é visto como alguém que errou, mas muito pontualmente.

            A ideia que parece estar por trás de todos esses dados é a presença ainda muito arraigada de um machismo estrutural que se dissemina em praticamente todas as relações de gênero. Subjuga-se a mulher e a conduz, na visão do agressor, a uma desumanização e consequente objetificação do seu ser em virtude dos instintos alheios: tanto o da agressividade quanto o da necessidade de satisfação sexual.
          
            É nesse sentido que se fazem mais importantes do que nunca os recentes mecanismos de visibilidade de toda a sorte de violência a que o gênero feminino está exposto e que perpassa pela mesma questão cultural aqui tratada – abrangendo, por exemplo, a exploração sexual ou as próprias agressões moral e psicológica. A Lei Maria da Penha, após toda uma história de violência extrema sobre a vítima e leniência do Estado brasileiro com a impunidade do caso –  o que levou, inclusive, à condenação do país frente à Corte Interamericana de Direitos Humanos –, reflete toda uma luta pela tipificação da violência doméstica e familiar contra a mulher enquanto tal e pela implementação de mecanismos efetivos de combate às agressões no âmbito do lar. O mesmo é possível dizer da incorporação, pela legislação penal brasileira, no ano de 2009, de outras práticas libidinosas não consensuais como pertencentes ao tipo estupro, que deixou de ser unicamente a “conjunção carnal”.

            É preciso que se continue criando políticas de enfrentamento à violência contra a mulher para que, na prática, a mulher conquiste sua autonomia plena. E, aqui, cabe lembrar do muito recente “Programa Mulher, Viver sem Violência”, que, se implantado com sucesso, será mais um desses passos importantes na luta contra a violência que oprime e mata diariamente. No entanto, somente isso não basta, há que haver o envolvimento de mulheres e homens na desconstrução da cultura social que permite que a violência contra a mulher se perpetue e se legitime através dos anos. O empoderamento social, a inclusão e a cidadania das mulheres requerem o fim da violência contra a mulher. O pessoal é, sim, político, e essa luta é de tod@s. ¡C! 

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