Em um futuro próximo vamos nos deparar com cinemas, teatros, e livrarias mais cheios. É o que geralmente ouvimos dizer sobre o vale-cultura, o novo programa do governo federal que visa à dirimir o subconsumo de cultura no país. A recém-empossada da pasta, Marta Suplicy, em uma explicação simples, disse que o vale-cultura seria como os vales transporte e alimentação, porém destinados a produtos culturais e humanísticos. Ainda que sancionada pela presidenta Dilma em dezembro passado, a generalidade que paira sobre a proposta se manterá até o fim do prazo para sua regulamentação.
Considerada uma política cultural inovadora no pais, o vale-cultura foge da linha adotada até então pelo governo, a saber, de fomentar a produção. Atualmente tal fomento advém de dois meios principais. O primeiro deles consiste nos diversos editais lançados pelo Ministério da Cultura (MinC), geralmente para viabilizar a produção cultural marginalizada no grande mercado. A eficácia desse mecanismo já é bastante discutível, pelos próprios critérios dos editais e por atender parte ínfima da produção artística do circuito não-comercial brasileiro. Muitas ideias, assim, acabam só no papel.
O segundo mecanismo é o patrocínio via isenção fiscal, por meio da Lei Rouanet, surgida no contexto neoliberal de subsidiar produções de grande atratividade mercadológica. É dinheiro que deixa de ser arrecadado para que se financie empreendimentos culturais tidos como rentáveis. Exemplo flagrante disso foi o caso do Cirque du Soleil. Com preços de R$ 50,00 a R$ 360,00, inacessíveis para a grande maioria, foram liberados pelo MinC R$ 9,4 milhões para a vinda do espetáculo "Saltimbanco", pariocinado pelo banco Bradesco.
A inovação do vale-cultura vem justamente de sua atuação na outra ponta do mercado, no consumo: disponibilizará R$ 50,00 para os trabalhadores celetistas que ganham até 5 salários mínimos (excluindo estagiários e aposentados). Prevista para ter a regulamentação dentro dos próximos 180 dias, ao privilegiar o consumo, essa política tem como objetivo a promoção e a democratização do acesso das classes mais baixas a bens culturais. Assim, as empresas que aderirem ao projeto vão bancar, sob isenção fiscal de até 1%, R$ 45,00, descontando os R$5,00 restantes do salário do trabalhador.
Quanto mais rica uma família, maiores são os seus gastos com produtos culturais. Estima-se, segundo o IBGE, que uma família sem um membro com curso superior gasta R$ 20,00 por mês nesse mercado, ao passo que, se houver uma pessoa com curso superior, esse gasto já sobe para R$ 160,00 mensais, como bem pontua Pablo Ortellado, em artigo recente sobre o tema. Nesse cenário, o vale cultura entraria como um grande oportunidade de, além de ampliar o acesso, aquecer um mercado até então inacessível a uma parcela considerável da população: o Estado injetaria cerca de R$ 7 bilhões ao ano, com previsão de 1 milhão de beneficiados diretos. Contudo esses números podem aumentar dependendo da adesão das empresas e trabalhadores.
Mas antes de bater palmas devemos levantar algumas questões pertinentes. Um pressuposto advindo do conceito amplo de cultura, denominado "antropológico" e adotado pelo ministério de Gilberto Gil é o de que ao Estado não cabe o papel de prescrever qual a cultura considerada aceitável ou inaceitável ao fomento. Isso evita abordagens paternalistas ou até mesmo preconceituosas do Estado em relação às manifestações culturais de seu povo. Seria um gesto de franco elitismo, por exemplo, negar o consumo de produtos ditos de "baixa cultura" segundo a estética das classes dominantes. Os trabalhadores, deste modo, têm tanto direito de consumir funk ou pagode quanto um concerto na Sala São Paulo, símbolo do pedante elitismo cultural que se apossa da mentalidade paulistana.
A questão da autonomia de escolha dos beneficiados, no entanto, não deve justificar e tampouco ofuscar os problemas mais sérios que o vale-cultura corre o risco de ter. O ponto crucial está em que tipo de mercado o Estado deve interferir e sobre o que, precisamente, pretende deslocar sua subvenção. O projeto, que deve ser regulamentado por uma "equipe técnica especialista" até julho, repete o processo de elaboração legislativa, em que os diferentes grupos de interesse interferem com seu lobby. No caso, são as grandes empresas que mediam o consumo de cultura no país. Após a sanção da Lei se inicia uma verdadeira corrida entre os setores interessados, enquanto a ministra Marta viaja pelo país para negociar os pontos da regulamentação.
Declarações recentes de Marta, nesse sentido, trouxeram à tona uma parcela no mínimo curiosa desse conflito. Em entrevistas recentes, surpreendeu ao dizer que o programa também poderia ser utilizado para pagar pacotes mensais de televisão por assinatura, voltando atrás duas semanas depois. Por maior liberdade de escolher o que consumir que tenham os trabalhadores, a questão reside na escolha política do Estado de fomentar mais ainda a concentração de mercado ou não. Em especial no concernente à televisão paga, cujo mercado tem como característica mais notável a forte concentração de poder das grandes empresas de telecomunicações que aqui atuam, a céu aberto, em regime de oligopólio. Somente as organizações globo seriam agraciadas com cerca de 25% de cada vale usado para pagar a televisão. Quem, afinal, seriam os maiores beneficiados do programa?
Uma política pública deve sempre vir no intento de contemplar interesses que ecoem diretamente ou indiretamente para o avanço da sociedade. O vale-cultura avança, mas dentro de seus limites. Resta torcer para que o verdadeiro beneficiado seja o trabalhador (e, em última instância, a sociedade), e não a indústria autoral ou as grandes empresas de telecomunicações, que já nos dão muitos problemas para a aprovação da nova Lei de Direitos Autorais e do Marco Civil da Internet em outras "corridas" legislativas. E já foi dada a largada. ¡C!
¡Para saber mais!
"O vale-cultura e a tutela dos pobres", de Pablo Ortellado: http://www.culturaemercado.com.br/pontos-de-vista/o-vale-cultura-e-a-tutela-dos-pobres/
"O vale-cultura vale?", de Inácio Araújo: http://inacio-a.blogosfera.uol.com.br/2013/02/28/o-vale-cultura-vale/
O Globo: "Marta Suplicy volta atrás e diz que vale-cultura não valerá para TV paga": http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2013/03/marta-suplicy-volta-atras-e-diz-que-vale-cultura-nao-valera-para-tv-paga.html
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